Augusto Freire
Especialista com experiência de 20 anos em projetos e implementação programas de identidade preservada, rastreabilidade e sustentabilidade, integrando soluções de mercado*
O desmatamento, queimadas e incêndios florestais são uma grande preocupação na agenda da comunidade internacional e das grandes empresas, em razão das tendências atuais, opinião pública e reputação. A ênfase maior se dá nas florestas tropicais como a Amazônica, e no Cerrado Brasileiro, porque esses são habitats de grande biodiversidade mundial. As florestas purificam a água, o ar, regulam o regime de chuvas e sequestram carbono, entre muitos serviços ambientais. Mas a verdade é que ainda não conseguimos construir um sistema de controle e incentivo à preservação que inclua maciçamente os produtores que atuam nessas regiões. Enquanto não houver um pagamento a esses serviços, teremos dificuldade em preservar nossas riquezas naturais.
Segundo a WWF, “na Amazônia cerca de 17% da floresta foi perdida nos últimos 50 anos, principalmente devido à conversão da floresta para a pecuária. O desmatamento nesta região é particularmente violento perto de áreas mais povoadas, estradas e rios, mas até mesmo áreas remotas foram invadidas quando valiosos mognos, ouro e petróleo (sic) são descobertos.” A mudança de uso da terra é o que causa a maior pegada de emissões de CO2 no Brasil. Em outros países é a queima de carvão e combustíveis fósseis.
Desmatamento e Capital Financeiro
Em curto prazo, atividades agropecuárias são mais lucrativas nas fronteiras agrícolas. Porém, podem degradar o ambiente e dilapidar capital natural, por vezes não renovável. Historicamente, a preservação ambiental sequer era um conceito considerado na Economia. A natureza era a ser domada e explorada – não existia o conceito de remuneração por serviços ambientais como, por exemplo, créditos de carbono.
Hoje há uma demanda muito grande por demonstrar que serviços ambientais estão nas cadeias de suprimento dos países desenvolvidos, mas a monetização desses serviços acontece ainda em poucas áreas bem-sucedidas. Se os mercados querem realmente desmatamento zero, precisam propor a monetização de serviços ambientais como contrapartida, e atrair os atores do sistema socioeconômico a gravitar em torno de um novo modelo.
Commodities Agropecuárias e Desmatamento
A mudança de uso da terra está associada, principalmente, ao cultivo de palma. Na América do Sul e Brasil a mudança de uso da terra está associada, em biomas de florestas, à extração de madeira, pecuária e, posteriormente agricultura em escala, principalmente soja, algodão e milho. No Cerrado a soja, e por consequência o milho e o algodão, não entrou em área de pecuária. O Cerrado foi convertido em lavoura diretamente, em geral.
A cadeia de soja em algumas áreas é remunerada por serviços ambientais – é o que ocorre com a soja não-transgênica e/ou produzida de forma sustentável, certificada. Entretanto, no geral, as cadeias de valor da soja são integradas apenas parcialmente em alguns segmentos ou áreas. São cadeias longas, e englobam muitos atores. Portanto, não são controladas por nenhum grupo de empresas que possa impor políticas setoriais. Ao contrário, são redes não-hierárquicas de relações comerciais, onde os atores em cada relação decidem qual serviço é necessário e entregue, e buscam o melhor valor de venda ou de compra. Os fabricantes de alimentos e rações não mapeiam suas cadeias de valor até os produtores de soja. Os produtores de soja têm uma escolha relativamente ampla de partes para quem vender seus grãos.
As organizações produtoras de soja dependem de seus financiadores para manter sua continuidade. Sua lógica é fazer o que sempre fizeram e fazer sempre melhor: produzir mais soja, vender mais soja, defender os interesses dos produtores e das indústrias de alimentos para manter o preço de custo baixo. Eles resistem às mudanças e fazem de tudo para manter seu estado estável de ‘business as usual’.
Olaf Brugman, ex-presidente da RTRS, a Associação Internacional de Soja Responsável, resumiu bem como funciona a cadeia de valor da soja: “Em redes de negócios complexas e relações comerciais onde ninguém tem controle suficiente para induzir mudanças em toda a cadeia, é improvável que cada ator entenda ou possa essencialmente conhecer os efeitos combinados das ações e estratégias de todos no futuro econômico, social e condições ecológicas.”
A Narrativa do Problema
ONGs e grupos de defesa do consumidor têm um papel importante na sociedade, de trazer à luz problemas que podem afetar a coletividade em vários aspectos, inclusive mudança climática. Quando a narrativa dos problemas socioambientais fica somente ao encargo desses grupos, empresas podem sofrer danos de imagem e econômicos. Essas organizações têm a função de mostrar os problemas, buscar transparência, mas não mostrar soluções, embora algumas trabalhem com empresas nesse sentido. Consultorias também são contratadas por setores específicos para mapear o suprimento de soja, quanto a desmatamento, para a fabricação de seus produtos de prateleira, especificamente aves, ovos, laticínios, produtos vegetais como bebidas feitas com soja, e, em alguns casos, suínos. As grandes empresas varejistas e fabricantes de alimentos têm aversão à corresponsabilização com relação a desmatamento e problemas sociais.
Um exemplo é o relatório ”Mudança para ração animal sem desmatamento na Europa”, publicado em julho de 2020, solicitado pela Iniciativa Coletiva do Varejo em Soja 2019, patrocinado pelos supermercados Aldi, ASDA, Co-op, Lidl, Marks & Spencer, Metro, Morrisons, REWE, Sainsbury’s, Tesco e Waitrose & Partners. Esse relatório mostra o mapa do fornecimento de produtos de soja na cadeia de valor ao Reino Unido e Europa, e resulta de iniciativa dos supermercados em trazer transparência e tomar para si a narrativa nesse campo. Os produtos de soja são os maiores responsáveis pela pegada de carbono, alta em produtos de origem animal, devido à mudança de uso da terra na América do Sul, no Brasil em particular – em outras palavras, desmatamento.
Qual Caminho Conduz a Soluções
A Moratória da Soja é o exemplo de acordo setorial que tem resultados na queda do desmatamento na Amazônia. A Floresta Amazônica tem uma imagem e valor mundial, como a maior floresta chuvosa do mundo, com riquíssima biodiversidade e um sistema pluvial sem igual. Contudo, a agricultura industrial deslocou-se para outras áreas, especialmente o Cerrado Brasileiro, na região conhecida como MATOPIBA, a nova fronteira agrícola. Esforços têm sido feitos para se chegar a um resultado semelhante ao da Moratória da Soja, embora se saiba que já há deslocamento ao Cerrado no Paraguai e Bolívia e a outros ecossistemas na Argentina. Até agora, porém, não se obteve resultados objetivos com um acordo ou moratória do Cerrado.
O que pode resolver a situação é um acordo multisetorial, entre produtores, compradores, indústria de rações e alimentos, varejistas, setor público e representantes da sociedade civil. Com uma cadeia de valor tão longa, há muitos obstáculos a superar, mas a Moratória mostra que é possível, pelo menos naquele contexto o foi. Todas as recomendações no relatório mencionado acima são válidas e condições necessárias, porém não suficientes, para se chegar ao desmatamento zero.
A Solução é Econômica
O aspecto crítico da questão é econômico. No Brasil existe a exigência da reserva legal de vegetação nativa. Os produtores que têm terra com vegetação nativa acima da reserva legal, têm o direito de abrir áreas consideradas aptas à agricultura. O que poderia motivá-los a não abrir essas áreas seria todos os compradores, em todos os continentes, não somente Europa, exigirem desmatamento zero. É algo improvável, senão impossível, uma vez que há interesses geopolíticos envolvidos. Uma possibilidade mais realista é haver um acordo setorial amplo de monetização dos serviços ambientais prestados por esses produtores.
Uma proposta de monetização é que esses produtores recebam o valor médio de U$150/ha, baseado no valor atual de arrendamento da terra, para não abrir novas áreas. Esse valor pode assegurar a manutenção de áreas de vegetação nativa com aptidão agrícola, excedentes à reserva legal. Com milhões de hectares potencialmente candidatos a esse pagamento por serviços ambientais, pode- se ter ideia da escala de valor.
Especificamente no caso da soja, isso geraria um pagamento hoje ao redor de $40 por tonelada, o que para soja não-segregada, e transgênica, seria algo excessivo, mesmo se certificada como produzida de forma sustentável. Ademais, o arrendamento da terra tende a se tornar gradualmente mais caro em função de aumento da demanda, a oferta não acompanhando em igual proporção.
Que possibilidades existem de fato?
O valor cobrado por serviços ambientais pode ser compartilhado por todos os produtos comercializados e produzidos na propriedade, contingente a compliance e certificação, com um prêmio de mercado. A ponta final compradora deve exigir alinhamento da cadeia fornecedora e pagar o prêmio ao produtor, na forma de créditos ou prêmio, no mercado doméstico e internacional.
Outra possibilidade é um sistema de créditos, pagos por um fundo de compradores e governos, que monitore as propriedades para garantir a continuidade dos serviços ambientais, e com indicadores e categorias específicas, por exemplo manutenção de vegetação nativa acima do exigido pelo Código Florestal Brasileiro, recuperação de áreas degradadas, ou pouco produtivas na pecuária, para a agricultura. etc., boas práticas agrícolas com diminuição de poluentes e conservação do solo e água, e até a integração de lavoura pecuária e floresta (ILPF).
Em todos os casos, os créditos ambientais devem poder ser repassados ao longo de toda a cadeia de valor, e devem poder ser reivindicados em produtos de consumidor por empresas de alimentos e de varejo. Devem gerar visibilidade ao consumidor final, que poderá optar por produtos com ou sem desmatamento, baixa emissão de CO2, carbono-neutros etc.
Portanto, urge construir um sistema em que os compradores e consumidores que exigem desmatamento zero remunerem os serviços ambientais de produtores, que nos permita, enfim, falar numa linguagem que todos entendem.
*Augusto Freire é Diretor Executivo – Programas Globais de Sustentabilidade FoodChain ID e Presidente do Conselho da Fundação ProTerra